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OPINIÃO

O mês de maio e o Pacto da Branquitude

Pretoteca 10/05/2023 - 18:25

		O mês de maio e o Pacto da Branquitude
Livro "O Pacto da Branquitude", da escritora Cida Bento. Imagem: Reprodução

Maio é mês de celebração aqui no Brasil e em pelo menos 80 países o Dia do Trabalho, ou Dia do Trabalhador, chamado mais comumente assim por aqui.

E tem sido para mim um mês de reflexão, que surgiu até antes da celebração do dia 1º de maio.


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Reflexão que começa por causa da minha última leitura: "O Pacto da Branquitude", da escritora Cida Bento.

Ela foi professora e também é psicóloga, uma das mais atuantes do país, com foco principal nas questões e relações desiguais no ambiente de trabalho, especialista na área de recursos humanos.

Cida é uma das cinquenta pessoas mais influentes do mundo quando o assunto é diversidade.

Busquei a leitura do "Pacto da Branquitude" depois de uma conversa com uma querida colega de trabalho.

O "Pacto" é um dos livros mais vendidos no Brasil quando a pauta é diversidade. Leitura muito recomendada por tantos colegas do movimento negro, mas que acabei adiando.

Na conversa com essa colega, ela me trouxe algumas falas do participante da última edição do BBB, Fred Nicácio.

Fred é meu amigo e eu já o conhecia muito antes do programa. Sei bem da força e potencial de suas falas e seu conhecimento sobre as questões de raça. E, por conhecê-lo, sei que a sociedade brasileira, que nunca nos contou a história que a história não conta, não estava preparada para ouvi-lo e refletir sobre suas pontuações.

Ela falava algo sobre aquilombamento, e levantava a questão de como seria se os brancos fizessem isso.

Discordei, e respondi dizendo que, mesmo que não haja um movimento formal, os brancos já fazem isso. Estão há séculos em grupos de pertencimento e coletividade que perpetuam todos os privilégios. Eles são a estrutura vigente e hegemônica numa sociedade tão racista e desigual quanto a brasileira.

Curioso eu ter dado essa resposta antes de começar a leitura d'"O Pacto da Branquitude". Pois Cida fala exatamente a mesma coisa.

É interessante observar o incômodo de colegas brancos quando trago o discordar. Embora tenha sido um diálogo saudável, em embates necessários e urgentes, percebo que todos não esperam discordância. Não esperam que pessoas como nós discordem de suas pontuações.

Eu sou uma mulher preta, do subúrbio do Rio de Janeiro.

Ir de encontro a um pensamento estabelecido como norma é uma profunda afronta.

A questão aqui não é uma crítica a uma colega especificamente, mas a todo um sistema completamente despreparado e no fundo acha que nossas questões não passam de mimimi.

Há um cansaço muito grande, um desgaste quando o assunto raça vem à tona. Porque além de ser negra e sofrer na pele as violências do racismo, eu me interesso por estudos de raça. Eu me aprofundo neles.

É preciso conhecimento, mas até quando apenas um lado vai ser o único disposto a se aprofundar e estudar sobre essas questões? Por que precisamos ser apenas os únicos no campo da problematização? É doloroso, dá trabalho. Causa um profundo incômodo tocar na ferida de quem está no topo. E a maioria das pessoas não está interessada em revirar um passado, pois o lugar de privilégios é infinitamente mais confortável.

Voltando à Cida Bento, ela traz questionamentos e dados profundos do retrato da situação do campo do trabalho no Brasil.

Logo no início do livro, ela fala sobre as heranças negativas da escravidão, às quais todos nós negros estamos expostos. Mas lembra bem que pouco ou quase nunca se fala da mesma herança escravocrata que apenas trouxe impactos positivos às pessoas brancas.

E não falo apenas de pessoas brancas ricas. Mesmo os pobres se identificam muito mais com seus patrões na elite do que com o trabalhador preto que exerce a mesma função.

Cida faz referência a um dos maiores nomes do movimento negro, William Edward Burghardt Du Bois, que nos traz verdades:

"Apesar da baixa remuneração monetária, eles [os trabaIhadores brancos] recebiam consideração pública [...] por serem brancos. Tinham livre acesso [...l às funções públicas [e] aos parques públicos. [...] Os policiais eram extraídos de suas fileiras, e os tribunais [...] tratavam-nos com brandura".

É preciso entender que "a herança está presente na vida de todos os brancos, sejam eles pobres ou antirracistas. Há um lugar simbólico e concreto de privilégio construído socialmente para o grupo branco."

Aí está a conclusão para o início de conversa com minha colega de trabalho: brancos já se juntam, ainda que não formalmente, para que sejam mantidos seus locais de privilégio.

É preciso que "brancos se sintam mal por serem brancos", pois esse incômodo é necessário, uma vez que não existe ser neutro, não existe "somos todos iguais".

Há sim incômodo nos processos seletivos na hora de enegrecer a empresa. Há relatos diversos no livro de Cida de responsáveis por RH reclamarem de pessoas negras e darem vez a profissionais brancos. Especialmente em cargos de chefia.

E ela diz ainda que quando a presença majoritária de pessoas brancas "é rompido pela presença de uma pessoa negra", o grupo se sente ameaçado pelo "diferente", que por ser na instituição ou no departamento a única pessoa negra, num país majoritariamente negro, expõe os pés de barro do "sistema meritocrático".

Além do Dia do Trabalho, o mês de maio traz outra data marcante: o Brasil completa 135 anos da assinatura da abolição da escravatura.

Uma formalidade que na prática não mudou muito a situação do trabalhador preto brasileiro. Apenas foram atualizadas as novas formas de exploração da força de trabalho.

Isso porque no geral discutimos a entrada e ascensão de pessoas negras em espaços empresariais, muitas vezes gente com diploma, doutorado etc.

Mas e os pretos pobres que ocupam lugares na limpeza ou em trabalhos pouco valorizados? Pouco ou nunca discutimos as possibilidades de ascensão ou mobilidade social para essas pessoas que no geral são terceirizadas.

Quem tá disposto a ajudar a mudar a vida delas?

E mais: os anos reforçam todo um sistema que age para não inserir e ser extremamente cruel com pessoas pretas.

Se não acreditam em mim, acreditem no ministro Luís Roberto Barroso, do STF (Supremo Tribunal Federal), que está em destaque no livro de Cida:

"Temos uma Justiça tipicamente de classe: mansa com os ricos e dura com os pobres. Leniente com o colarinho-branco e severa com os crimes de bagatela. Meninos da periferia com quantidades relativamente pequenas de drogas são os alvos preferenciais do sistema."

E mais, a Rota, elite da PM de São Paulo, o próprio Estado, também assume sem medo que o tratamento é diferente para pessoas brancas:

"São pessoas diferentes que transitam por lá. A forma dele abordar tem que ser diferente. Se ele [policial] for abordar uma pessoa [na periferia] da mesma forma que ele for abordar uma pessoa aqui nos Jardins [região 'nobre' de São Paulo], ele vai ter dificuldade. Ele não vai ser respeitado [...] se eu coloco um [policial da periferia para lidar, falar com a mesma forma, com a mesma linguagem que uma pessoa da periferia fala aqui nos Jardins, ele pode estar sendo grosseiro com uma pessoa dos Jardins que está ali, andando."

Diversidade é mudar as coisas. É estar aberto a esse diálogo e sair incomodado, mexido, e entender que não existe aquilombamento branco.

É abrir espaço para reparar um problema histórico longe de ter fim.

É olhar em volta e se perguntar: quantos negros exercem a minha função aqui? E nas posições de destaque? É ceder sim seu lugar.

E você, aliado e antirracista, está disposto a ceder seu lugar?

* Este é um conteúdo independente e não reflete, necessariamente, a opinião da Orbi.

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