
O forte temporal que atinge a zona sul da capital paulista deixa Beto Bruno em alerta. Há poucos dias, uma chuva fez sua caixa d’água transbordar e alagar o escritório da esposa, a artista Denise Gadelha. “Eu tô numa semana...”, diz o músico, que ainda precisou lidar com problemas na internet, após um caminhão alto arrebentar uma fiação, e com a troca da placa de número da residência, que foi vandalizada.
Sentado em uma cadeira na sala de jantar, ele entrega que aceitou nosso convite sem ter entendido muito bem a proposta. “Eu não guardo essas coisas, nem tenho tanta memorabilia assim.” Em seus armários, não estão preservados os “terninhos” fundamentais na estética da Cachorro Grande, banda que esteve à frente por duas décadas e que se destacou entre as principais figuras no rock nacional do início deste século. “Essas coisas ficaram velhas, podres, ainda mais depois de uma turnê! Tive que jogar fora”, conta, dando risada.
As apresentações eram muito explosivas, um acontecimento! Há muito tempo não tinha um movimento de rock por lá. Estávamos completamente sozinhos. Beto Bruno
Continua após a publicidade
Não há também credenciais de apresentações pelo Brasil, ou cartazes do decorrer da carreira que começou nos anos 1990 em Passo Fundo, no Rio Grande do Sul. Seu único prêmio VMB (Video Music Brasil), da MTV, por “Melhor Show” em 2007, foi quebrado pelo Flórida, um de seus 12 gatos. Mas nada de tristeza ou ressentimento!
Daquele evento, uma caixinha branca é mais especial que o próprio troféu. Nela, estão peças de futebol de botão customizadas do seu time de coração, o Internacional, com a escalação que ganhou a Libertadores da América no ano anterior. “O Samuel Rosa [Skank] me encontrou e deu esse presente. Nós somos jogadores de futebol de botão, volta e meia vem aqui ele e o Juliano [Alvarenga, filho de Samuel] e a gente joga. E é um barato, eu lembro que eu voltava com o prêmio, mas o que eu mais curti foi isso aqui”, afirma enquanto segura o botão do Fernandão, um dos protagonistas da campanha do Colorado.

Outro presente inesquecível, que ele se apressa para buscar e carrega com cuidado enquanto desce as escadas, é um enorme e enquadrado cartaz original, de 1964, do filme “A Hard Day’s Night”, dos Beatles – sua maior paixão musical. “Sempre tinham fãs que tentavam nos encontrar nos hotéis e a gente pedia pra não darem informações dos quartos e tudo mais. Uma vez, à noite, eu nem lembro a cidade, ouvi uma batida na porta do meu quarto. Abri e era um fã. Eu perguntei ‘o que é que você tá fazendo aqui, cara?’ e ele disse que tinha um presente e mostrou o pôster enrolado.”
Mas, anos antes de conquistar seu público e mergulhar em turnês pelo Brasil, Beto Bruno fazia sua primeira gravação com Os Malvados Azuis, quando ainda morava em Passo Fundo. As três músicas do EP “Água que cai do céu” nunca chegaram além da única cópia existente do material, recentemente encontrada pelo artista. “Faz menos de um ano que eu achei esse CD na confusão de uma mudança, dentro de uma caixa fechada. Eu fiquei com ele depois da mixagem e faria cópias para o resto da banda, só que em menos de 60 dias terminamos e a Cachorro Grande se formou. Eu não fiz cópia pra ninguém, as músicas estão aqui e não existem na internet. A única maneira de escutar é nesse ‘CDzinho’ aqui.”
Na capa e verso, artes originais de Denise, de quando o namoro ainda estava no começo. Perguntado sobre revisitar esse EP tantos anos depois, ele não dá muita bola e se interrompe ao ler, em voz alta, o nome do irmão Marcelo Justo, morto há cinco anos, que assinou a produção executiva do trabalho. “P..a que pariu, isso aqui foi mais emocionante do que ter escutado as músicas.”
No começo da Cachorro Grande, já em Porto Alegre (RS), Beto Bruno lembra da rápida escalada de sucesso pela região Sul do país. “As apresentações eram muito explosivas, um acontecimento! Há muito tempo não tinha um movimento de rock por lá. Estávamos completamente sozinhos.” Na época, cem latas, com arte inspirada em Andy Warhol e contendo o primeiro CD, uma camiseta e uma fotografia, foram enviadas para a imprensa de todo o Brasil, mas foi só com a ajuda de Lobão que a banda atingiu alcance nacional.
“Ele estava um show nosso e disse que nunca tinha visto algo tão porrada desde os Mutantes! A gente tinha um disco pronto e ele lançou numa revista mensal que ele tinha. Em menos de seis meses, recebemos uma proposta da Deckdisc pra gravar o terceiro disco, com eles bancando um ano da gente morando em São Paulo.” E em São Paulo ele ficou.
Amante do vinil, Beto Bruno esperou quase uma década para que um álbum da Cachorro Grande ganhasse uma prensagem em 12 polegadas – “Cinema” (2009), um dos primeiros títulos a serem produzidos pela Polysom após a fábrica ser comprada pela gravadora do grupo. “Eu morava perto de uma Livraria Cultura, aí todo dia eu ia até lá, na seção de discos, pegava os meus que estavam no fundo e colocava na frente. Os funcionários ficavam assim: ‘ó lá o Beto, ele é louco mesmo’. Alguém arrumava e no dia seguinte eu fazia de novo! [risos]”
Seu próximo “bolachão” que deve se juntar à grande estante de vinil é o segundo álbum da carreira solo, “O Escudo do Arcanjo Miguel”, lançado no ano passado. “Foi a primeira vez que eu gravei um disco que não estava fazendo turnê. Sentei, estudei as letras e falei sobre mim, coisa que não tinha espaço quando estava em uma banda. Eu nunca falei sobre meus amores, meus medos, meus defeitos... É a coisa mais pessoal que eu fiz e sinto que fiz na hora certa.”
Com a chuva ficando mais forte, peço para que a última história seja a da fotografia com The Rolling Stones, impressa e colada na porta da cozinha e única lembrança física do momento “mais f..a da minha vida, não só da minha carreira, né?”. “Nosso empresário chegou na frente da minha casa tocando ‘Satisfaction’ no último volume do carro. Quando contou que a gente ia abrir para os Stones em Porto Alegre, eu desmaiei”, diz. No Beira-Rio, estádio do seu time de coração, Beto Bruno se orgulha de não ter sido vaiado, como acontece com outras bandas de abertura, e revela que a fotografia do encontro com os ingleses só foi divulgada no ano passado.
“Antes de conhecermos eles fomos revistados, não podíamos entrar com celular. Foram menos de 10 minutos, demos um abraço neles e a equipe deles que fez essa foto, que demorou uns três meses pra chegar. A gente não podia divulgar ela por cinco anos, assinamos um contrato, tinha multa e tudo. Quando deu o tempo, soltamos nas redes sociais. É tudo o que a gente tem e eu não preciso de mais nada.” Nada mal para quem, no início da visita, acreditava não ter muita coisa para mostrar.

*Esta reportagem foi produzida em fevereiro de 2022 e publicada originalmente em março de 2022 na Pauliceia, revista cultural do Grupo Bandeirantes de Comunicação.