COLUNA: PRETOTECA
Carta à Glória Maria

Glória, você não me conhece. Mas você é das pessoas que mais mudaram minha vida.
Muito já foi dito nos últimos dias, desde que você pregou em nós mortais a maior das peças.
Talvez você já tenha lido e ouvido muito sobre você mesma desde o último dia 2 de fevereiro.
Mas eu quero te contar umas coisas bem rapidinho.
Eu cresci no mesmo bairro que você, Oswaldo Cruz.
Eu, ainda criança, ouvia de muitos vizinhos mais antigos: 'A Glória Maria morava aqui"; "A avó dela era fulana e vivia aqui no bairro".
Eu não acreditava no começo, pois não imaginava que alguém tão enorme, alguém que trabalhava na TV, pudesse ter saído de um bairro tão simples, no subúrbio do Rio de Janeiro.
Mais tarde ouvi de você em várias entrevistas que tinha mesmo crescido entre Oswaldo Cruz e Madureira, nosso amado subúrbio do Rio de Janeiro.
E era verdade.
E era verdade também que eu tinha a mesma cor da pele, tinha vindo do mesmo bairro, e tive a ousadia de escolher a mesma profissão que você.
Era algo inimaginável para alguém de Oswaldo Cruz, você sabe. Até então você era a única pessoa capaz de tal feito.
Sempre recebi apoio dos meus, mas também tinham medo desse passo em direção ao desconhecido do Jornalismo.
Era melhor procurar algo que desse mais estabilidade, como concurso público, a Marinha etc.
Quando eu decidi pelo Jornalismo, o que eu mais ouvia era "vai ser a nossa Glória Maria?".
Eu nunca serei Glória. De você só existe uma. Mas sabe, eu tenho seu DNA.
Você que nunca teve quem te pegasse pela mão, que te mostrasse como fazer, teve a grandeza de, depois de se desdobrar em tanta solidão, pegar tantas de nós, meninas negras, pela mão. Você não tinha um modelo. Você era o modelo.
Muito do que é feito por nós jornalistas nos dias de hoje só existe porque você criou.
Anos depois de você ser a primeira repórter negra na TV brasileira, hoje somos algumas que se espelharam em você.
E sabe, eu, aquela menina de Oswaldo Cruz, assim como você, hoje apresenta um telejornal na TV aberta! Você acredita? Às vezes eu não.
Tudo porque você me pegou pela mão inúmeras vezes, em tantos dias da semana, em tantos domingos e dizia: Cynthia, vem ver o mundo. Ele pode ser seu também.
Eu sou tanto você que compartilho intensamente o amor pela vida. E talvez o medo da morte.
É tão bom estar aqui, brilhar como você nos ensinou, que dá uma pena enorme pensar em deixar de viver, e viver, e viver e amar e descobrir o mundo imenso que você mostrou que existe.
Você deixa um legado, uma cartilha de como viver.
Eu escolhi Jornalismo também pela sede de viver, de ver o mundo, de mudar as coisas. Assim como você.
Você mostrou pra pessoas pretas que nosso histórico de dor, de tantas amarras literais, poderia se transformar num futuro de liberdade. De asas pelo mundo.
Você deixa uma mensagem de liberdade.
Você veio como um furacão. E com sua imensa vontade de viver não podia mesmo se deixar ver fragilizada.
A gente acreditava na sua recuperação física, mas a sua beleza, vaidade, esse ser deslumbrante precisava permanecer.
Como muitos bem lembraram, você escolheu ir justamente num dia lindo, de mar, de festa, de vida e alegria como você.
E mais: você ousou ser e envelhecer na TV, um ambiente que não permite que os anos passem para as mulheres.
Onde estão as mulheres com mais de 50 no vídeo?
Mas você estava lá.
E enfrentou esse mundo hostil de peito aberto não só envelhecendo, mas fazendo isso com juventude, usando a roupa que queria, sem se deixar ser limitada.
Você era a personificação da vida. E tão, tão marcante e presente, que eu nunca me preparei pra possibilidade de te perder. Ninguém nunca se preparou pra isso.
Nunca pensamos em obituários, homenagens póstumas porque você é vida pra sempre, e pôde, e foi celebrada em todos os dias da sua existência.
A gente nunca se preparou para sua morte porque essa palavra nunca existiu no seu vocabulário.
E quer saber? Gente como você não morre nunca.
Você está aqui, florescendo em mim e em tantas meninas negra. Somos as tantas sementes que você espalhou por aí.
Obrigada por ter sido tanto.
Um dia a gente se encontra.
*Este é um conteúdo independente e não reflete, necessariamente, a opinião da Orbi